quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

TDAH - Entre tapas, beijos e conflitos matrimoniais


O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ou TDAH é, como a própria palavra diz, um transtorno. Ou seja, uma perturbação, um impedimento, um obstáculo, carregando sempre uma carga de sofrimento significativo na vida da pessoa e de sua família. O TDAH é um transtorno do desenvolvimento que cursa com sintomas de desatenção, hiperatividade e ou impulsividade, em idade precoce na vida e disfuncionais e mal adaptativos à idade do sujeito, sempre gerando um forte impacto negativo e um prejuízo global na qualidade de vida da pessoa. Como se não bastasse, o TDAH cursa muito freqüentemente com problemas de aprendizagem além do outros transtornos psiquiátricos, como o transtorno opositivo desafiador, transtorno de conduta, transtorno de humor, transtorno de ansiedade, abuso de álcool e drogas entre outros. Como toda criança é hiperativa, fica muito difícil fazer diagnósticos precoces de TDAH. Só profissionais especialistas na área poderão estar aptos para tal. De todo modo, ainda é na escola o lugar onde fica mais fácil detectar essas crianças, pois a professora tem a condição de estar observando grupos iguais de crianças e com isso facilita ela perceber a inadequação da criança com TDAH. No caso do TDAH forma desatenta, a situação é mais crítica pois o transtorno é silencioso e não incomoda o professor. Nesses casos, o diagnóstico costuma ser feito muito mais tardiamente, com prejuízos mais acentuados para essas crianças. Nos casos tipo hiperativo ou combinado, a situação é mais alarmante, os sintomas “gritam” e, portanto são tratados mais precocemente. Como o TDAH é uma condição neurobiológica dimensional, como a hipertensão arterial, o diabetes, etc., ela pode se manifestar de graus que variam de leves a moderados.
Lembrar que no caso do TDAH as comorbidades são a regra – e não a exceção. Transcreverei, preservando qualquer detalhe que possa comprometer a identidade do paciente, um trecho de uma recente consulta a uma família com um filho portador de TDAH combinado sendo a mãe, portadora adulta de TDAH tipo desatento.
Segundo palavras da mãe do Breno, o casal foi feliz por cerca de 8 anos. No segundo ano de casados nasceu a Jéssica, o xodó da casa. Seis anos depois nasceu o Breno, e com ele, veio também a desagregação e a discórdia.
Ela já chegou na consulta chorando, falando e enxugando as lágrimas dos olhos. Nem Natal a gente tem mais. Pôxa, ele (o Breno) queria uma Árvore de Natal, eu comprei uma linda, grande, cheia de bolas e luzinhas com pisca-pisca, embrulhei os presentes, botei no pé da árvore, pensando que ele fosse ficar feliz... Mas deu tudo errado de novo... Aonde foi que eu errei? Sempre a culpa é minha, meu marido me culpa de tudo, diz que ele (Breno) puxou a minha família, que é perturbada e doida. O Breno, imediatista como sempre, não quis esperar pra abrir os presentes na hora da ceia de Natal e ontem mesmo já começou a gritar, pular, parecia um “encapetado”. Ele passou dos limites. O pai pegou-o pelo braço, empurrou-o para longe da árvore, ele caiu no chão, mas em segundos ele se levantou e “voou” em direção à arvore, quebrou uns galhos, umas seis bolas voaram pela casa. Ele pegou um brinquedo, arrancou o papel, dizendo que o brinquedo era dele e se era dele, ele podia abrir na hora que quisesse. O pai deu um berro, arrancou o presente da mão dele e foi arrastando o Breno até o quarto e o trancou lá dentro de castigo. Eu achei que ia desmaiar. Meu marido falou que ia passar a Ceia na casa do irmão. Que pra ele bastava e que ele estava ficando doente e qualquer dia podia até “matar” o garoto.
... o Breno sugou tudo de mim, dra, tudo, ele chorou por quase 2 anos sem parar. Vivia pulando de colo em colo. Só cochilava se a gente o ninasse forte e mesmo assim por uma ou duas horas. Eu e o meu marido nunca mais vivemos uma para o outro. Namorar, beijar na boca, transar? Uma ou outra vez na vida e no corre-corre, sem sossego... hoje em dia vivemos como irmãos. Durante alguns anos de casado, éramos uma família, mas agora somos um bando de “loucos enraivecidos”, uns “bichos”, dentro de casa. Estamos perdidos na selva que hoje é a minha casa.
E eu fico desesperada, ele (Breno) é igualzinho a mim, eu era assim, igualzinha a ele. O Breno com 5 anos já tinha sido expulso de 2 creches, não acompanhava a turma, só vivia batendo e empurrando os colegas. Não tinha medo de nada nem de ninguém e vivia arrumando problemas. Ou ele era o “pele” da turma ou aquele aluno que quando entrava na sala os colegas torciam o nariz... Toda hora a escola trocava o Breno de turma. Mas não adiantava nada. Eu não entendo: ele quer tudo na hora, do jeito dele! Senão fica furioso e sem controle! Não aceita “não” como resposta. Ele fica insistindo, insistindo, suplicando o que ele quer até eu perder as forças ou “surtar” e acabo deixando ele fazer o que quiser... Ele não para de repetir as mesmas coisas, a gente não agüenta, acaba cedendo porque senão nós vamos fazer uma besteira qualquer dia desses. Eu e meu marido também não nos agüentamos mais, a gente já jogou a toalha há alguns meses. A família tá uma “zona total”.
E pensar que o Breno ele era um docinho, ele era tão lindo, um anjinho! Por breves segundos o Breno dormia bem, mas até isso durou pouco... Ele dorme muito mal. Eu me sentia tão mal quando eu o pegava no colo, pois ele nunca ficava bem, nunca se encaixava no meu corpo. Parecia que eu não sabia pegar o meu filho no colo, ele nunca ficava à vontade. Ah, Dra., eu nunca me imaginei vivendo esse inferno. Meu Deus...
O Tininho (o marido) já cansou de dizer que vai embora, que não tem forças, que o casamento esfriou... Mas eu também não agüento mais!. Mas eu tenho que ajudar o meu filho. Eu preciso! A senhora me ajuda, doutora?
As histórias se repetem. Não muito diferentes umas das outras. O casal não sabe como lidar com o comportamento desafiador e impulsivo do filho, que acaba manipulando o casal e comprometendo o relacionamento e a paz de toda a família. Todos estão sem chão, perdidos e sem saber como fazer e como lidar com o “filho-problema”. Cheio de culpa, defensivos, reativos, sob um clima de alta tensão e hostilidade. Normalmente, nesses casos, as agressões verbais podem partir para agressão física e aí as situações ficam mais desesperadoras. Discussões violentas são comuns. Não raro o casamento acaba e todos se sentem traídos e injustiçados e com muita culpa. Usualmente, com o passar dos anos, os pais vão perdendo as forças, “passam a deixar tudo pra lá”, “a entregar o filho nas mãos de Deus”. Em meio às brigas, os xingamentos são muito freqüentes e a criança é tachada de todos os rótulos possíveis, alguns inimagináveis. Infelizmente, um percentual muito grande de crianças assim, acaba largando a escola ou indo trabalhar precocemente ou entrando para o mundo das drogas. Eles sentem-se “fora de lugar”, como “peixes fora d água”, um total fracasso. Em épocas de Natal, aniversários, Ano Novo ou outras datas de congraçamentos, essas famílias ficam constrangidas, obrigadas a “estarem bem e felizes” (quando é justo o oposto), brindando algo bom. Todos perguntam como estão os filhos, os que estão fazendo, se estão trabalhando, o querem fazer, etc. e essas famílias que têm um membro que não se adequa aos padrões normais da sociedade ficam deprimidas e envergonhadas e com o passar dos anos tendem a se afastar dos próprios familiares. Afinal, os filhos dos outros vão subindo na vida e fazendo estágios, se formando e etc., e tudo isso se torna muito doloroso em famílias onde um membro tem um problema que não o permite deslanchar na vida como o esperado...
Como não poderia deixar de ser, a vida sexual do casal desmorona, o clima de respeito, carinho, amor e companheirismo vai para o espaço e só fica lugar pra raiva, culpa, vergonha, dor, vontade de morrer e de sumir... “O que você fez na cabeça desse garoto para ele ficar assim?” essa coisa de um culpar o outro, isso é toda hora. Marido e mulher embrutecem, passam a ter raiva do mundo e fogem de todos, e aos poucos, todos fogem deles também...
Os divórcios e separações são a tônica da questão, com os pais ficando desencorajados, deprimidos, se achando as piores pessoas do mundo.
Vou transcrever um pedacinho da primeira sessão da família, comigo:
Mãe:
- Doutora, eu imploro, me ajude, eu não sei mais o que fazer. Dentro de casa é só tensão, discussão, meus filhos competem o tempo todo, o barulho é infernal...
Pai:
- Doutora, hoje eu sou uma homem nervoso, eu sinto que vou explodir a qualquer momento. Eu não estou agüentando mais --- ele aponta para a mulher.
Dra.:
- a sua esposa? Você não agüenta mais a sua esposa? Por quê?
Pai:
- ela não faz nada, nada, é muito nervosa, agressiva, e eu me sinto muito explorado. E o meu filho, eu não sei o que fazer. Eu quero sair de casa, mas a culpa não deixa. Tá vendo aqui? Eu fiquei diabético, uso até essa bomba no corpo. Fiquei hipertenso, o dinheiro não dá pra nada. Eu não sei o que fazer.
Breno:
- Dra, eu quero uma mobilete, eu posso? Eu juro que não vou correr, eu juro, eu juro, eu juro.....
Dra:
- mãe, como é o seu dia-a-dia? Como é isso, dele estar falando que você não faz nada?
Mãe:
- eu não sei doutora, eu não tenho ânimo, não tenho vontade de nada, às vezes eu estudo com ele, mas a verdade é que eu tenho uma empregada que faz as coisas pra mim, porque, eu não gosto de fazer nada... (diz ela, chorando muito).
Breno:
- eu fui espancado a vida toda. Espancado cruelmente, doutora, a senhora acredita em mim?...
Pai:
- É, eu batia muito nele, doutora, mas agora não bato mais, ou melhor, bato menos agora... esse menino me transformou num bicho...
Irmã do Breno:
- E eu sou negligenciada, abandonada essa família louca! É como se eu fosse morta, ninguém se importa comigo! Tudo é Breno pra lá, Breno pra cá! Todo mundo só berra e ninguém se entende! Ninguém tá nem aí pra mim!
Breno:
- Doutora, por favor, eu posso ter a minha mobilete? Eu fico bonzinho, eu juro, por favor...
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